Toda Quinta-Feira Santa é assim: a cidade de São Cristóvão se transforma para a representação teatral dos últimos momentos de Jesus Cristo. As luzes das principais ruas foram apagadas, para que o público pudesse entrar no clima da encenação. A programação religiosa começou às 19h, com a Missa do Lava-Pés lotando a Igreja N. S. da Vitória (Matriz), em seguida o pároco do município, Sergio Ancelmo saiu em procissão com os fiéis até à Igreja Santa Isabel (anexo à Santa Casa de Misericórdia – antigo Orfanato), localizada na Praça São Francisco. Paralelo à programação religiosa, os mais de 320 atores, coordenados pelo Grupo G12, e dezenas de outros voluntários já estavam apostos em toda a área da praça esperando o público para iniciarem a Procissão do Fogaréu. Pouco antes das 22h, o som das matracas quebraram o silêncio da cidade e os homens (apenas homens), saíram em procissão reproduzindo a perseguição ao filho de Deus.
Participando pela primeira vez da Missa do Lava-Pés em São Cristóvão, Frei Sérgio Ancelmo, disse se tratar de um momento especial em sua trajetória de dez anos de religioso. “Eu nunca tinha assumido uma paróquia tão antiga, com tradições seculares, como é o caso de São Cristóvão. Sinto realmente participar de uma estrutura diferente e especial. Aqui, as pessoas se envolvem com mais vontade nas questões da igreja”, frisou.
O frei ainda explicou o significado da Semana Santa para os fiéis e para a Igreja Católica. “O Tríduo Pascal (quinta, sexta e sábado) são o coração da liturgia. Tudo que a gente celebra, durante todo o ano, se condessa nestes três dias, pois nestas datas celebramos a Paixão, Morte e Ressureição do Senhor, que é o maior mistério da nossa fé. Então tudo que virá no decorrer do ano será síntese do que vivemos plenamente nestes dias. Pedimos a Deus que todo esse clima de recolhimento possa tocar a vida de todas as pessoas da cidade e do estado, pra que tudo isso não fique apenas em belos ritos externos, mas que toque o coração de todos. Assim, como Cristo que se sacrificou, que todas as pessoas estejam dispostas a se sacrificarem umas pelas outras, porque a síntese da vida de Jesus não é glamour, nem festa. A síntese da vida de Jesus é o sacrifício. É a cruz em nome de alguém. É dar a vida por alguém. Então que as pessoas vivam isso, se doando, sendo generosas para com as outras, acolhendo umas às outras em suas diferenças, sendo misericordiosas, bondosas. Se tudo isto acontecer, então estará sendo realizado o mistério que estamos celebrando hoje”, enfatizou o frei.
Tradição
Segundo o histórico do evento, a Procissão do Fogaréu foi trazida pelos portugueses e desde o século XVIII faz parte do calendário cultural do município. Vale frisar que no ano de 1963 aconteceu uma interrupção do evento, por ordens de Frei Fernandes, que justificou, na época, a não compreensão da simbologia por parte dos homens que participavam do séquito. A retomada da tradição do Fogaréu aconteceu em 1978, e, desde então, a mobilização popular não deixa o evento cair no esquecimento.
Já em meados do mês de janeiro, o Grupo G12 (em alusão aos 12 Apóstolos) se organizou e ensaiou para que a ação fosse grandiosa aos olhos do público. No roteiro da encenação foi possível assistir a Última Ceia, os Apóstolos, a traição de Judas e a perseguição a Jesus Cristo. São Cristóvão virou palco para escribas, fariseus e soldados vestidos com indumentárias remetendo ao passado.
“Desde a retomada nunca mais paramos, e já estamos na 39ª apresentação. Podemos embelezar o espetáculo dentro do espírito religioso, mas nunca mudar a história. Tudo o que foi apresentado aconteceu com Jesus na Quinta-Feira Santa, e a gente mostrou ao público esses mesmos acontecimentos. Nossa apresentação já é uma tradição, dentro da primeira capital do estado, então temos o papel de manter esse histórico não apenas pela importância dos fatos, mas para mantermos vivo o espírito religioso de cada cidadão”, disse Daniel Lima Costa, membro da comissão organizadora do G12.
Após o início da encenação da última Ceia, a população se preparou para a Procissão do Fogaréu (ação que remete a busca por Jesus Cristo). Acenderam-se as lamparinas e na ocasião ouviram-se as matracas soando. O cortejo saiu pelas ruas caminhando, entoado cânticos religiosos e sendo seguido por fiéis, em sua maioria homens (historicamente as mulheres eram proibidas de sair nesta procissão. Nos últimos anos isto vem mudando). Pelo segundo ano consecutivo, Ricardo de Souza Ventura se voluntariou para levar as luminárias com as chamas da Procissão do Fogaréu. “Acho importante participar, ser útil neste evento. Gosto de fazer parte dessas iniciativas religiosas. Acabamos servindo de exemplo para outras pessoas, mostrando que todos unidos conseguimos realizar uma atividade tão grandiosa quanto esta. Nós, que carregamos as tochas, somos importantes, pois abrimos o caminho para o restante dos participantes da procissão”, pontuou.
Seguindo a tradição, os sinos das igrejas não devem tocar durante a Semana Santa. Assim, os sons das matracas ganham importância primordial na hora de embalar os cânticos religiosos. Acompanhado da irmã (Helen), o jovem, Leandro de Jesus Carvalho, teve papel fundamental em todo o trajeto. Ele e mais outras dezenas de meninos carregaram as matracas e não perderam o tom e nem o pique da fé, durante a procissão. “Saí ano passado e voltei este ano para participar de novo. Em minha casa tenho alguns parentes que já fizeram isso. Assim, já sou familiarizado com a matraca. Aqui tenho alguns amigos, de minha idade, participando também e gostamos de ajudar nessa procissão”, disse ele, que confessou ter recebido um treinamento para usar o objeto, sem com isto machucar o braço.
Fé
Reconhecendo o empenho dos organizadores, a visitante, Maria José Macedo enalteceu a procissão. “Já conhecia a missa e quis retornar para presenciar de novo este ato. Não conhecia o Fogaréu e adorei o que vi. Achei bem organizado, cumprindo a hora certa. Achei tudo muito bem elaborado e bonito”, pontuou.
Já para a sancristovense, Maria José Dias Carmelo, acompanhar o Fogaréu já é um ritual cumprido desde a infância. “Todo ano tenho um olhar novo para algum detalhe. Este ano, por exemplo, a apresentação dos atores foi muito bem encenada. Os efeitos visuais deram um tom especial. Acho importante esse tipo de iniciativa, que acaba atraindo, inclusive, pessoas que nem são diretamente ligadas à igreja, mas que pela curiosidade acabam prestigiando o evento, fazendo despertar nestas o momento de reflexão e fé que muitas vezes estavam adormecidos. Em minha criação, durante a Semana Santa, fico mais concentrada em minha fé, tudo como manda a Bíblia”, enfatizou.
Tradição
Para o vice-prefeito de São Cristóvão, Adilson Junior, a Procissão do Fogaréu já é uma das datas mais importantes do calendário de eventos do estado. “As pessoas passam o ano inteiro trabalhando para que quando chegue o dia, tudo transcorra da forma perfeita, como vimos acontecer aqui. O evento contou com muitas pessoas da cidade, mas também recebemos diversos turistas. Nossa intenção é trabalhar para engrandecer cada vez mais essa procissão. É importante que as tradições sejam mantidas e o compromisso da atual gestão é melhorar cada vez mais isto, trazendo a cada ano mais turistas, fomentando assim a nossa economia”, pontuou.
Segundo informou o presidente da Fundação Municipal de Cultura e Turismo João Bebe-Água, Gaspeu Fontes, a Prefeitura de São Cristóvão deu todo o apoio logístico, por compreender e respeitar a magnitude da expressão artística do povo sancristovense. “Montamos som, palcos e colaboramos na questão da iluminação para deixar a cidade pronta para a procissão, que há mais de dois anos, já foi reconhecida como Patrimônio Imaterial de Sergipe, pela importância religiosa que tem (projeto da deputada Ana Lúcia). Este espetáculo aumenta a fé do nosso povo, e cultiva a autoestima de todos nós. Quando resgatamos a história, quando conseguimos rever o que os nossos antepassados viveram encontramos sentido para nossas vidas, na atualidade. Trata-se de um evento seguro, nunca houve registro de violência, assalto, nada disto na Procissão do Fogaréu de São Cristóvão, quem esteve presente veio pela fé e tenho certeza de que voltou pra casa em paz”, enalteceu.
Por Jaime Neto